sábado, 11 de setembro de 2010

O Miserinha

          Colégio Nossa Senhora da Misericórdia. Bairro do Andaraí. O Miserinha. Nome carinhoso dado pelas alunas que nele estudavam. Diferente do Companhia de Maria,conhecido por sua rigidez e madres austeras e antiquadas, o Miserinha era um colégio feminino, privilegiado por sua paisagem quase bucólica e famoso pelas freirinhas que nele trabalhavam. Todas muito meigas e de pensamento avançado para a época. Razão pela qual minha mãe concordou, depois da minha insistência, que eu fosse estudar lá. Mamãe não gostava de freiras. Tinha sido aluna pobre de colégio de freira e sofrido o preconceito na pele. Não queria isto para mim.
          O ano era o de 66 ou 68 e o Rio vivia o auge da ditadura. Eu tinha primas e amigas que já estudavam lá e amavam o colégio. Até hoje me vem a lembrança dos corredores encerados e limpos. Do silencio e do badalar do sino da capela. Ali dentro se experimentava a paz. Ou, pelo menos, eu a experimentava. Um sentimento, como diz o meu livreiro de Itaipava, de sentir que a vida tava em ordem. Fui muito feliz com aquelas freiras.
          Eu me via como uma adolescente meio que saliente. Ou, mais autentica. Graças à Deus sempre pude ser eu mesma. Resultado talvez de uma educação mais aberta, menos rígida. Minha mãe era dada a diálogos. Amava a proposta de Summer Hill. Tinha um pensamento à frente do seu tempo. Lá em casa se conversava sobre tudo, o que resultou numa relação “arejada”, muito diferente da que eu via nas casas das minhas amigas.
          Sendo assim eu não precisava fingir que gostava das aulas de religião. Preferia, por exemplo, bater papo com a Irmã Maura. Uma noviça legal à beça de conversar com adolescentes. Havia com ela uma identficação que me punha a imaginar como ela teria se tornado freira e parado ali. Pessoa tão aberta que era. Querida mesmo.
          Tinhamos um grupinho, é claro. Uma por todas e todas por uma. Assim foi que um dia entre uma aula e outra o nosso grupinho estava no corredor esperando a aula de religião que acontecia numa sala à parte no final corredor. Aquele dia tava tão legal que imaginei um desperdício estragá-lo com uma aula tão monótona. E, fui mais longe. Assim que a irmã passou por nós e entrou na sala vi a chave na porta e a tranquei. Ingênua, pensava estar tudo resolvido. Lembro-me das colegas sorrindo com um riso nervoso, o que estranhei. Afinal eu as tinha livrado daquela coisa “cacete”, como se dizia na época.
         Segundos depois entendi o nervoso delas quando ouvi o chocalho da madre superiora. Explico. Esta andava com um molho de chaves junto a cintura, se é que se pode chamar assim, que quando caminhava nos corredores silenciosos fazia chocalhar como uma cobra.
          Ela foi chegando mais perto, mais perto e a chave da sala queimando na minha mão fechada. Em pânico arremessei a chave pela janela do corredor que dava para um terreno cheio de mato. Estava Salva! Pensava eu. E pra explicar que a irmã estava lá dentro porque o vento bateu a porta? Costumo dizer que eu tive uma vida muito boa. Diferente do que eu esperava, a madre superiora não me constrangiu com sermões. Mas, alegria de pobre dura pouco, me chamou na sala dela para conversar e insistiu em chamar mamãe no colégio que , por sua vez insistiu em chamar um chaveiro e deu por resolvida a questão. “Não se fala mais nisto.Tenha uma boa tarde, irmã!”
          Não me lembro de, em casa, ter ficado de castigo por causa da “gracinha”, nem de ter sido repreendida. No fundo no fundo acho que mamãe entendeu o meu gesto e, não deixou de apreciá-lo; uma pequena vingança por ter sofrido humilhações nas mãos de religiosas quando criança. Pelo resto da vida sempre que o assunto era juventude ela contava o caso, com um brilho cúmplice nos olhos, e, aqui entre nós, muita galhardia.
          Anos depois voltamos ao colégio pois queria casar-me na capela do Miserinha. A madre superiora, já mais velhinha, não me reconheceu (não falei que tive uma vida boa?).Talvez já fosse o Alemão, mas quando eu disse meu nome ela deu um sorriso enigmático ,daqueles que você não sabe se trouxe lembranças boas ou ruins, e apenas repetiu... Angela de Frias...Pôs a mão no queixo, me olhou nos olhos e, diplomáticamente, exclamou: É um prazer casar uma ex aluna na nossa capela. Não preciso dizer como eu e mamãe saímos do colégio. Cabeças erguidas, sentimento de ter contribuído para a ordem e o progresso da sociedade do Rio de Janeiro. Tudo muito civilizado...

          Quando entrei na igreja de véu e grinalda não era apenas a Angela de 23 anos. Trazia comigo outras Angelas conhecidas dos tempos de colégio. Companheiras dos tempos de folguedos. Chorei de emoção com os primeiros acordes do órgão. O velho órgão. Mas esta é uma outra história. Para uma próxima postagem. Aguardem!

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