segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Clarissando, again... (Homenagem a Emília Gaumitz)

        
       Há uma época em nossa vida, geralmente na metade da vida, em que precisamos tomar uma decisão- possivelmente a decisão psíquica mais importante para nossa vida futura- a respeito de nos tornarmos amargas ou não. As mulheres costumam chegar a este estágio num ponto em que estão "cheias até a raiz dos cabelos". Seus sonhos de quando tinham vinte anos podem estar jogados de qualquer jeito. Pode haver corações partidos, casamentos desfeitos, promessas esquecidas.
        Qualquer um que viva muito acumula lixo. Não há como evitá-lo. No entanto, se a mulher quiser voltar à sua natureza instintiva em vez de mergulhar numa atitude amarga ela renascerá revitalizada. Nascem ninhadas de lobos todos os anos. Geralmente são uns bichinhos de pelagem escura, de olhos ainda fechados, cobertos de terra e palha, mas de imediato estão alerta, brincalhões e amorosos, querendo a proximidade e o carinho. A mulher que volta à mulher selvagem também voltará à vida. Ela vai querer brincar. Ela vai ainda  querer  crescer.Mas antes, é preciso que haja uma purificação.
      Se você alguma vez viajou por estradas do México ou até mesmo do Brasil, terá visto pequenas cruzes brancas junto à estrada. São os descansos, sepulturas.
      Os descansos são símbolos que registram uma morte. Bem ali, exatamente naquele ponto, a jornada de alguém pela vida a fora foi interrompida inesperadamente.
      Antes de completarem vinte anos, as mulheres já morreram centenas de mortes. Elas iam numa direção ou noutra e foram impedidas de prosseguir. Tinham sonhos e esperanças, que também foram cortados na raíz. Qualquer uma que não concorde é porque está dormindo. Todas essas mortes podem passar pelo processo dos descansos.
      Criar  descansos significa examinar sua vida e marcar os pontos em que ocorreram as pequenas  e/ou  as grandes mortes. Gosto de traçar uma linha cronológica da vida da mulher numa longa faixa de papel longo e assinalar com uma cruz ao longo dessa linha, da infância até o presente, os pontos em que morreram aspectos e partes do seu self e da sua vida.
      Assinalamos a ocasião em que se optou por não seguir por uma determinada estrada, caminhos que foram obstruídos, emboscadas, traições e mortes. Desenho uma pequena cruz na linha cronológica nos pontos que deveriam ter sido pranteados ou que ainda precisam sê-lo. Também escrevo “Esquecido” naqueles pontos que a mulher pressente mas que ainda não vieram à tona. Também escrevo “perdoado” acima dos fatos de que a mulher já praticamente se liberou.
       Recomendo que vc faça descansos, que se sente com uma linha cronológica da sua vida e diga “Onde estão as cruzes? Onde estão os pontos que devem ser lembrados, que devem ser abençoados?” Em todos eles há significados que você trouxe até a sua vida atual. Eles precisam ser lembrados,mas ao mesmo tempo precisam ser esquecidos. Leva tempo. Exige paciência.
        Descansos é uma técnica consciente que se compadece dos mortos órfãos da psique e lhes presta homenagem, sepultando-os afinal.
        Seja boa para si mesma e crie descansos. Eles assinalam os locais das mortes, os tempos sombrios, mas eles também são cartazes de amor ao seu sofrimento. Eles são transformadores. Há muitas vantagens em prender certas coisas à terra para que elas não saiam nos perseguindo. Há muitas vantagens em sepultá-las.

        (Resenha de um texto de Clarissa Pinkola Estés em Mulheres que correm com os lobos.)




Um comentário:

  1. Pois é amiga, sinto que estou precisando preparar uns "descansos" para alguns eventos, antes que meu fígado se acabe. Engraçado que continuo me indignando com as coisas que vejo como se não tivesse passado por mais de meio século de cruzinhas na estrada. Acho que o problema está em procurar melhorar e não ter pra quem entregar isso tudo; é como se sentir com baixa imunidade. Às vezes me sinto tão amarga...Deve ser o fígado...

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